Solilóquio das duas da manhã
O tempo está passando. Nunca achei que isto fosse acontecer comigo. Já sou uma mulherzinha. Só que ainda não me dei conta disso.
Olho para minhas mãos quando penso na vida. E ainda não noto alguma diferença.
Mas quando as analiso penso no que elas fizeram. É uma espécie de balanço.
E o que tiveram feito minhas mãos? Digitado matérias loucamente, transcrito entrevistas, feito contas, preenchido cheques, amarrado cadarços, feito carinho em quem merecia e em quem não. Puxado descargas de banheiro e mangas de kimono. Tenho algum talento. Vejo meus dedos longos e ocorre-me que poderia ter sido uma pianista. Desperdicei minhas mãos e minha mente?
Quando os outros mostram quem sou me surpreendo. Odeio ou envaideço. De um modo ou de outro, sempre mostro minha estupidez. Na verdade, sou igual a todos, medíocre e inteligente. Pouco estão ligando se a gente morre, voa ou dá um peido. E no fundo, às vezes prefiro ser levada a sério como o que não sou, ignorada humanamente, com decência e naturalidade.
Estejamos derrotados por esta enfermidade. Discorramos, então, sobre as coisas efêmeras com a opulência da vaidade. Deixemo-nos levar pelo fascínio irresistível de andar com a massa, gostar do que ela gosta. Comamos até nos empanturrarmos, compremos até nos endividarmos, vomitemos verborragia. Passemos como figurantes que não falam, felizes da caprichosa solenidade do trajeto. Tornemo-nos impessoais, ocos de nós mesmos. Sejamos mais um. Em comédia, farsa ou tragédia, não importa. O que vale é ser aceito e reconhecido. E deixemos a vida passar naturalmente, como o vento e o dia, sem dar à luz a nada de nós mesmos, ao longo do tempo que nos apodrecerá.
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